quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Deixe seu recado

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Vou desligar meu celular
e você vai cair para sempre na caixa-postal
Após o sinal, se você esperar,
meu silêncio será colossal.
Vou também fazer uma resposta automática para meu e-mail
E lá estará escrito, em caps lock gigante : " Você é seu maior devaneio"
Vou também contratar uma pessoa para ser o meu espelho.
Ela vai sair na rua para mim, comprar o sal, comprar um rim,
ler a primeira página do jornal
e dar bom dia
E eu vou estar embaixo da cama
lendo poesia
soterrada
chorada
na lama
escrevendo no chão :
" No meu peito não tenho mais nada,
nem coração...
Sua ladra!"
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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

" Carta de amor enviada em um canhão" *

Eu botei uma praga em você
Fiz magia
Fui na bruxa
Fiz caveira
Simpatia
Deixei despacho na rua
Que é pra você se arrebentar toda
Espero que você exploda
Que seu corpo inche
Risque estrias
Seu cabelo queime
Seus olhos sequem
E seu umbigo desmanche
Quero ver você sofrendo
Chorando uma tempestade
Parindo um elefante
Vomitando um edifício
Encharcando a enfermaria
Quero que seu coração imploda
Eu quero que você vire uma hemorragia
Que não saiba se encontrar
Que beba o veneno
Encontre a bomba
Suma, desapareça
Teu nome está no buraco do mundo
Tua foto queimei no sapo
Teus presentes enterrei no saco
Eu quero que você se apague
Se enforque nos lençóis
Que o mal te esfrie
Que assaltem teu ouro
Que tua casa pegue fogo
Teus parentes mortos
Teus amigos te traiam
E um negão desmarcado trepe contigo
E você não possa mais andar
Que perca dinheiro
Que não consiga mais emprego
Que as pessoas te xinguem ao passar
Que o piano caia na sua cabeça
Pise na merda
Escorregue na banana
Perca o sono
Seja rejeitada, cuspida, escarrada
Que lhe falte abraços
Que lhe falte beijos
Que conheça o nada
Eu botei uma praga em você
Que é pra depois, assim...
Você volte em passos lentos pelo jardim
Suplicando pra voltar pra mim
Não há nada
Como amar
Uma mulher
Toda arrebentada.
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* Esse poema de admirável poder de fogo é de um menino
de olhos azuis e sincero talento. Também queria escrever assim.
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O Gabriel Pardal está aqui
: http://www.nomedacousa.com
e aqui neste poema acima
http://www.youtube.com/watch?v=ACgzqtvYwTg&feature=related

domingo, 26 de setembro de 2010

Rumo

Soa delicado o som de seus pés em corredores infinitos. Esse vazio agora é só mais alguns obstáculos dessas intransponíveis solidões. Parece difícil ? Não é. Acostuma, como cortes em árvores para marcar de onde veio. Na volta você reconhece e ali está, pertecendo a ela, ao seu caminho, aos retornos ou pelo menos a possibilidade que teria existido de retorno. Nem que ele não venha. Nem que ele não deva vir. Pertence ao desejo, ao amor que você ainda esconde, negando-o. Para o bem ou para mal. Escondendo frêmitos, choros e ilusões. Como expor fragilidades fosse derrota. Não é. É só medo. E coragem. E intensidade. De aventuras em florestas com árvores que precisam ser marcadas. Ou você não vai reconhecer, nem a você mesmo, nem os seus sentimentos... sejam eles quais forem.
Nem o som de seus pés em corredores infinitos. Indo. Vindo.

sábado, 25 de setembro de 2010

recusa

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está terminado o que ainda iria começar
pois nem o céu vai te abrigar
um nó na garganta
para esse gesto que esquece
porque nesse lugar em que estas
só o inferno te aquece
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Mesa de Jantar

Na mesa, de toalhas com frutas bordadas à mão, Mrs. George acende um cigarro e traga atrás de uma gargalhada esfuziante. Com a mão esquerda, ela estica o guardanapo vermelho com desleixo em direção ao batom de Miss Glory. O rapaz de nome Apple carrega nos braços mordidas ensanguentadas. Copos de vinhos intermináveis adornam em manchas secas e um prato com espinhas de peixe fumegantes desce pela garganta de Mr. Pearl. Uma pulseira de pedras azuis se esfarela no chão, baixando cores em piso de carbono 14, anunciando velhos motivos de rancor. Mrs. George mostra seu cartão de visita com endereço e precisão, em papel de árvores raras, cortadas a esmo para a outra moça, agora sem batom. Um brinde abaixa as armas. E nas camas enquarteladas uma paixão sublimará decadência e olhares dourados de solidão.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

amoreiras sobre o mar

Deitamos embaixo da árvore e o céu parecia salpicado de uma chuva que caiu ao contrário, sobre um chão verde e azul, colorindo tudo de gotículas vermelhas. Esse pensamento me fez rir. Seth me olhou de canto e se aproveitou do meu bom-humor. Lá vem ele com suas artimanhas...
- Lá do lado Leste, lá onde o sol está nascendo, as amoras são doces e gordas como bolas de sorvete.
- Por que, por acaso do outro lado não são ?
- Nada disso, dê a volta na árvore e deste lado você olha para elas e sente a boca se enchendo de uma saliva agoniada, a boca está se prevenindo contra um azedume só.
- Hm. E em cima ?
- Por volta das onze e meia da manhã, neste lugar, nuvens carrancudas de tanto cinza costumam aparecer todos os dias e ficar por aí, até o fim do dia. Então, indignadas, lá em cima, as amoras tem essa acidez só digna daqueles que perderam a oportunidade de ser iguais aos bem sucedidos, suculentos e gostosos como bolas de sorvete. Por questão de uma hora, duas, elas ficaram um tanto amargas.
Estou rindo.
- E tem mais!
- Mais o quê?
- Aqui embaixo, onde as mãos alcançam, as amoras se encolhem assustadas, contra a vontade das mãos de meninas e meninos.
Eu estico o braço, obviamente sem alcançar.
- Não, não. Aqui não podemos alcançar.
- Não vamos comer ?
- Não. Vamos correr até o mar. Onde milhões de pés estão plantados sobre as águas, com amoras felizes e gordas como bolas de sorvete.
- E quem vai nadando até elas ?
- Eu vou caminhando.
- ?
- Hum-rum.
Seth tem dessas. Não tenho idéia do que ele anda lendo, mas anda ficando ainda mais doce, como bolas de sorvete.
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O Senhor respondeu: “Se tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria. " ( Lucas, 17:6)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

nas soleiras das portas

Peachies esfregou as pontas do sapato na poeira da soleira da porta, um pensamento norteava em volta. No meio da sala, suas coisas pairavam absortas. Ela estava achando aquilo tão esquisito, suas coisas. A soleira da porta nunca notada. Peachies estava mudando. Incontrolável. Tinha esquecido tudo, a vontade de cigarro, os nervos frágeis, o falso amor. Estava tudo encaixotado. E Peachies parada na porta assustada sabendo para onde ir.
Mas aí teve o átimo de traição. E o prego fincando na parede, grudando erros. E o maldito filme francês. E os gansters. Bandidos. Mafiosos. E botas de cowboy. E chocolates no elevador. E as músicas. Fivelas, grampos esquecidos. E a única frase que entendia ela por inteiro, aquela que nem você sabe que fez.
Peachies bateu o sapato no chão, tirou a chave da mochila e trancou a porta. Seu pensamento iria traí-la por toda a vida, mas ela não estava mais interessada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

a garota dos olhos de meteorito

Parece que o mundo está passando em slow.
Alguns dizem que é amor, outros que é só o que eu sou.
Seus olhos piscam lá no infinito
e meu limite apressa
na incandescência de dois meteoritos.
meu desejo desespera na sua distância
trazendo vento, pérolas e ânsia.

domingo, 12 de setembro de 2010

nos dias em que a chuva chega

Nem um pedaço de céu azul. As nuvens cinzas se espalhavam uniformes até o horizonte. No gramado, o gato branco sentia as gotículas finas como poeira se colocarem a esmo sobre seu pêlo aveludado. E devagar, ritmado como só um gato é capaz, entorpecido pela sensação, ele se esgueira para baixo de tábuas encostadas no beiral da casa.
No vidro da janela, gotas maiores começam a deslizar, limpando a sujeira em riscos verticais. No sofá, uma criança começa a bocejar. De repente parece que a chuva pára. A criança rola para o lado, abre o olho, insone.
Do outro lado de um outro lugar, um pretume assume o firmamento que cobre um parque. O sol correu como uma bola de futebol e nada mais se viu que remetesse a ele. Nuvens grossas e negras se prostraram definitivas. Os visitantes, os mais temerosos, correram se abrigar antes que tudo acontecesse, enquanto os mais aventureiros se aninhavam feito pássaros na hora de dormir, em ninhos improvisados por ali mesmo. Essa chuva que estava vindo era das feias. Ela veio e desaguou formando pequenos riachos e correntezas provisórios. Nos carros ao redor do parque, crianças e adultos experimentavam o torpor. Na grama dormiam os pássaros desajustados.
Em um outro extremo de outro espaço, atletas esguios foram surpreendidos durante uma longa maratona pelo erro da meteorologia, que teria dito que a tempestade só viria depois da corrida terminada, agora estão lá estatelados sobre o asfalto em profunda modorra.
Aliás, nesses tempos, a meteorologia detém importância única. Aqueles que não querem ser apanhados sem guarda-chuvas e capas impermeáveis no meio da rua, devem estar atentos e inexoravelmente informados. Ou o sono vai chegar.
Ninguém sabe ao certo quando tudo começou. Foi tarde o momento em que todos se deram conta. Tempestades de sono caiam sobre a Terra.
Como de costume só com o sol se consegue levantar, mas não é mais como de costume só dormir quando a noite chega.
Tudo mudou e os raios mais fortes avisam pesadelos sendo constituídos. Nenhuma alma está segura da letargia quando a chuva começa a tilintar no telhado. O que antes parecia água, agora são devaneios do profundo sonho humano.

sábado, 4 de setembro de 2010

A Evolução das Espécies

Seth passou a mão nas linhas dos textos, lendo com os dedos sujos de açúcar. Um pacote de jujubas vermelhas, laranjas e amarelas se destacavam em cima da pilha de livros azuis, de capa dura, difíceis como um caminho de mata fechada, ceifada com vontade e sem preguiça.
- Eu estou lendo todos eles!
Eu já sabia que ele nunca desistiria. Os dicionários com mapas de linhas coloridas à mão, rios que atravessam e desembocam em surpresas. Seth sorria cada vez que encontrava uma resposta. E devorava jujubas feliz da vida.
Peguei o penúltimo livro de letras douradas e li : " A expressão da Emoção em Homens e Animais."
Seth estava todo concentrado na nossa biblioteca.
E eu sentia uma espécie de amor infinito como o símbolo matemático, tatuado para sempre.
O que nem Charles sabia é que estava diante de mim o menino mais evoluído nessa história toda de simpatia, mascando doces para sempre com a beleza terna dos leitores ávidos.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

a distribuição.

Casas com bordas de plásticos resistentes, anti-choque, anti-gente, anti-gatos, e varandas com grades brilhantes, suspendem no ar. O oxigênio espesso invade os tapetes de milímetros a mais e alguns pulmões resistentes, anti-sujeira, anti-gatos, anti- inferioridade, adornam pés descansados, afoitos por maciez sem importância, visíveis só lá de dentro. Embaixo das varandas suspensas, tapadas por flores holográficas de beleza só visível por aqueles que se escondem por trás, uma multidão olha para cima. É hora do almoço. Gatos famintos miam e se arranham entre o empurra-empurra nos seus melhores dias. A multidão aprendeu a ficar em silêncio, o som é do atrito de roupas, de solados gastos, se arrastando há anos. Mr. Doctor, Mrs. Doctor e Little Child esperam o momento mais divertido do dia – a distribuição. Uma fileira de casas se estende por quilômetros a perder de vista, todas emergem ao céu, colorindo a visão para cima, preta como carvão. São pontos de imensidão dourada, mas é melhor nem pensar sobre isso. Não há beleza quando se olha de baixo. A multidão se alvoroça sigilosa, enquanto em alguns minutos, os moradores das nuvens suspensas devem terminar as refeições e aparecer como anjos de asas carregadas e murchas. Na hora que eles quiserem, a obrigação por lei, entre meio-dia e duas da tarde, é que qualquer sobra deve ser dada a multidão. È obrigado sobrar, mas não tem importância nenhuma a quantia. É obrigado ao membro da casa suspensa ser ele mesmo o prestador do serviço, questão de bondade. E também de prazer, mas é melhor nem pensar sobre isso. Os animais do chão, humanos ou não, apreenderam o momento e a chuva de restos vai começar.