segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

2021 e o diabo chegando com seu reino.

Construo placas feitas das tábuas da prateleira, prendo tudo com fitas firmes que encontrei no fundo do guarda-roupa. Não estou mais preocupado com a comida. Foda-se. Penso em água só, que ainda corre em apenas uma das torneiras, estou preocupado no caso de acabar, mas penso nisso alguns segundos e logo esqueço. A energia elétrica titubeia, porém o ventilador está ligado há dias, estável e forte, ando com ele de tomada em tomada, onde eu estou, ele está. Sei que isso uma hora também vai parar, mas penso nisso alguns segundos e logo esqueço. Sei que mais um dia as quatro janelas pequenas do meu apartamento minúsculo ficarão hermeticamente negras. Coloquei uns encaixes perto delas para fixar as placas nas janelas. Tudo a noite: as soluções, as preocupações. O dia vai amanhecer e assim vou me protegendo dos tais raios. Tirei as lâmpadas, desliguei os eletrodomésticos, do chuveiro não sai mais água... Pingo um suor fétido e quente constantemente, me enxugando com uma toalha já muito suja. Olho por uma das janelas e está praticamente tudo escuro lá fora, com um certo estranhamento a nova escuridão na qual todos os contornos se vê. A noite não alivia. O dia é uma incógnita. Sinto tudo piorando. Ninguém mais sai de casa. Fico muito cansado depois de terminar a última das quatro placas e sento na frente do ventilador com a cara praticamente encostada nele, o ar circulando que esvoaça meus cabelos raros parece um sopro de vulcão, fico ali parado e sinto um prazer que eu tinha esquecido. E logo passa. Já enchi todos os vasilhames da casa com água, mas no outro dia tenho a impressão de estarem com menos da metade. Será ? Sinto falta de vozes, o mundo parece surdo-mudo. Sinto um certo desespero. Hoje, durante a tarde, já estava parecendo que não iria agüentar. Tenho medo do outro dia e tenho vontade de virar um daqueles copos de água na cabeça, mas me contenho. Olho durante muito tempo para a geladeira desligada e apago dormindo sentado, com a cabeça caída sobre o peito. Desperto algum tempo depois com um calor infernal, infernal, infernal. Levanto com um ímpeto enérgico e coloco em trinta segundos as quatro placas nas janelas. O dia começava a clarear. Sinto medo, muito medo. Tinham avisado antes, mas era inacreditável. A Terra aquecia em progressão geométrica. Em trinta dias tudo iria torrar feito amendoim. Inacreditável. Amanheceu e eu não via nada lá fora, as placas não deixavam os raios entrar, mas derretiam as fitas. Eu derretia e quase já não enxergava. Iria desmaiar. Encostei tudo nas janelas, os guarda-roupas, as mesas, dei meu jeito. Não agüentava mais, estava desmaiando. Morrendo ? Lá pelas dez da manhã entrei em colapso, virei toda a água que guardei em mim. O fundo dos potes. Em dez segundos estava tudo seco. Estão todos morrendo. Vou até a torneira de onde saia água e nada. Estão todos morrendo. Vou morrer, não tenho idéia de quantos graus faz, mas é o diabo chegando com seu reino. Sinto um cheiro de carvão. Pode ser ? A madeira, os plásticos. A energia elétrica parou de vez tem um tempo, tinha esquecido... Sol a pino. Gigante. Estou esquecendo. Vejo uma claridade absurda por baixo da porta. E fecho o olho.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Passagens

Minha cara, você está tentando " ancorar um navio no espaço". E, naquele átimo que ele parou e você contemplou, era a ruína chegando junto ao momento da visão perfeita.
Era a nau que você estava esperando, desde que nasceu.
mas, minha cara, você não tinha chance...
... o navio seguiu, porque navios não são feitos para ficarem no espaço e muito menos ancorados.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Biografia

Engasgo com um suspiro e uma turba de pérolas desce uma escada coberta de veludo vermelho. As meninas esperam lá em cima e acenam freneticamente como se não importasse o açucar em volta da minha boca. Sinto um olhar mais direto e desconfio de um desejo calado para sempre. Já estou lá em cima e sou agarrada pela cintura por quatro mãos, enquanto uma outra passa os dedos nos meus lábios. Meus olhos sempre tão tímidos encolhem minhas mãos e meu corpo não reage a nada, apenas sigo o fluxo. Em um dos quartos algo nos espera e eu torço por algo que meu silêncio não perturbe. Nem a mim, nem a ninguém. Meu coração de vidro congela e uma artéria jorra rubis ensandecidos. A porta abre e meninas entram arrancando os saltos. Vou para o canto onde minhas trevas e meus sapatos não conspiram contra nada. Uma delas vai insistir na minha mudança abrupta, para dois meses depois se queixar de não ter conseguido uma só insensatez da minha parte. Embora a minha sensatez seja o insensato descendo as escadas nos olhares debochados. Elas conspiram e telefonam exigindo algo novo todo dia. Como se fosse possível arrancar sardas e cabelos ruivos de uma criança assustada.