sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Três recados que não chegarão em você



um trecho sublinhado
sorrateiramente
em um livro de poesia
de um nobel de literatura
no sebo de uma esquina

um bilhete enfiado
na casca de um caracol minúsculo
atravessando uma BR

uma lembrança apregoada
na minha sombra
todos os dias






terça-feira, 13 de agosto de 2019

pluviômetro



em um dia de tempestade
na rua
com os sapatos borbulhando
as meias encharcadas
os pingos caindo gordos nas minhas costas
os carros passando nas poças

molhando os restos
já taciturnos
sem vaidade


No dia dessa inundação.


você fingiu que nunca me conheceu
um
pedaço de pano na enxurrada

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Rodeio


o amor unilateral
costuma não atravessar para outros lados

fechado por arames
alquebrado e abatido

costuma, sim, olhar por entre os vãos das cercas

como um touro bravo

sentindo a poeira da arena
preparado para a sua dor

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Peregrinação

Havia três dias que Moze estava sem dinheiro. A vontade de cigarro tinha partido seu pulmão em mil pedaços e o orgulho, de terno e gravata, não deixava ele chegar perto dos colegas para pedir um. Nunca fora bem quisto. Uma tosse insistente afastou um cachorro vadio que farejava do lado. Moze andou durante o intervalo do almoço todo, procurando uma nota de cinquenta no chão como quem procura um Deus que ele nunca acreditou. Obviamente o destino não seria tão ameno, assim como Deus não é. Foi quando ele ouviu a explosão, olhou para o leste e viu a linha dourada que subia até o céu. Estava longe, afrouxou a gravata e seguiu naquela direção. Tinha dez minutos até bater o ponto. Correu. A linha dourada desaparecia à sua vista aos poucos. Chegando perto do posto de gasolina incendiado, um mendigo velho e doente o agarrou pelo colarinho. E, nas suas palavras, disse :
- O maldito do anjo tinha uma espada de fogo e luz, mandou tudo pelos ares.
Moze empurrou o homem com violência e seguiu para perto do feixe de luz, agora só um brilho. O calor do posto ardendo batia no seu rosto. Ele abaixou a cabeça nesse gesto que fazemos para enxugar o suor. 
Uma carteira de cigarro jazia lacrada a seus pés.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

a dobra do vento



um rapaz moreno e baixo, de cabeleira grande como um cinamomo curvado, recolhe as folhas caídas na vitrine estufada da padaria da esquina. Os pães, à vista, emitem um fumaça turva e aconchegante. o cheiro é o mesmo de sempre, lépido, deixando um rastro que se parece com crianças correndo.
as coisas passam e não voltam jamais, esquecidas como o vento que dobrou a rua.
na nossa passagem tinha uma esquina, mas eu sequer um dia vi, mergulhada que estava
em meus sentimentos.