quinta-feira, 23 de junho de 2011

meu coração, que batia tão rápido.




Olhei pelo buraco da fechadura e meu coração bateu como coração de pintinho. Eu tinha sido devorado pelo bilhete que ela me deixou na caderneta e a vendo comer daquele jeito me devorava duas vezes. Na mesa tinha um copo cheio de algo que borbulhava e eu só enxergava pela metade, mas aquele borbulho me lembrava o cinema e o barulho do projetor que parecia o barulho de esquilos mastigando nozes. E eu fiquei ali. Ela cortava aquilo e aquilo sangrava e escorria pela boca dela, era nojento, mas era mais assustador do que nojento e eu não sentia nojo. E meu coração de pintinho batia tão rápido que eu não conseguia mais escutar. Não sei porque fiquei lá olhando por aquele pedacinho de mundo e não tirava o olho, não gostava da cena e não gostava mais dela, não nessa situação. Uma menina assim tão bonita comendo aquilo sem nem pensar, sem nem atinar, sentada na mesa grande com aquela pose de princesa, com os dentes vermelhos como rubis. Foi quando senti enfraquecer meu coração e as pernas amolecerem, senti um suor escorrer feito mar pelo meu corpo e tirei o olho do pedaço de mundo, olhando para o meu peito. Só vi o buraco que ela deixou ali e o mar não era esverdeado como eu vi no cinema, era escarlate feito suas unhas. E morri esmagado como um coração de pintinho entre dedos fortes, enquanto ela comia meu coração sentada na mesa grande.






sexta-feira, 10 de junho de 2011

Almoço, 13:00. Bem depois do pólo norte derreter.



Não consigo me acostumar com esses ovos em cápsulas, rosqueados com tampas que parecem com tampas de garrafas antigas. Temperados e coloridos de acordo com cada sabor, queijo, chilli, pizza, páprica, galinha caipira. "Galinha?". Ficam milimetricamente redondos como se o sol tivesse caído bem no meio do mar congelado onde dizem, ficava o pólo norte. "Onde os ursos brancos nadavam atrás de sua comida". Há um mês o noticiário mostra os hindus chorando seu Deus morto, desesperados, com a mão no rosto pelas ruas sujas de Mumbai, depois que todo o rebanho do planeta foi dizimado por mais uma peste qualquer. Correria e superprodução de carneiros, porcos e aves para saciar a vontade carnívora do planeta. " Que serão dizimados por outra peste qualquer". Um mês atrás ela saiu para visitar os bebês, não voltou e eu não entendi nada. Toca o telefone e dizem " Só podemos nos responsabilizar por bebês sem amparo até os seis meses de produção, mas no caso do senhor..." Desligo. Os rumores do que eles fazem com os bebês não são bons. Não me importo. Frio como o pólo norte há cinquenta anos atrás. "Onde um urso branco rasga a pele de um bebê leão marinho sem dó, é seu alimento". Dentro do prato preto aquele ovo parece um buraco no mundo. Esfriou, enquanto eu observava crianças indianas sendo consoladas por autoridades. Três meninas e um menino. Não ligo de volta. A luz que indica visitante entrando no edifício acende na minha cara. " Bem na hora do almoço". Desligo a tv, porque não aguento tanto escândalo por causa de um Deus morto. Batem na porta. Estou desanimado. Peço a identificação ocular. É ela.
- Ligaram do centro genético.
- Não tenho ido até lá...
- Você saiu para ir até lá...
- Mas não fui. Por que você...?
- Não quero mais.
- E o que eles vão fazer ?
- Você também não se importa.
Desânimo. Visita à toa. Desisto do ovo. " Nada mais poderá estragar minha vida". Recebo o boletim do dia durante o banho. " Por que diabos assinei essa porcaria ?".
" Não é recomendado andar sem proteção hoje na cidade, índice de poluição acima do recomendado..."
"Merda!"
" E na Índia...". Apago. " Porra, malditos indianos, que saco." Agora só me resta sair de casa, mas tenho que vestir essas roupas ridículas e essa máscara sufocante. Desisto. Sento na frente da tv e um canal de inutilidades mostra urso polares adormecidos há cinquenta anos. Adormeço.

domingo, 5 de junho de 2011

Zoom





Luiza agora tinha um namorado. Loiro, alto e com uns olhos azuis preguiçosos. Zoom estava estranho, ressabiado, seus pêlos caiam em escala sufocante. O tapete branco da sala cuspia agora bolas cinzas como se fosse uma torneira. Luiza dava uma volta pela casa, passava o aspirador na sala, dava outra volta pela casa e lá estavam as bolas cinzas no tapete. Luiza olhava para o lado e Zoom olhava para ela, parado como uma esfinge, na frente da porta. E ela não conseguia entender de onde um gato de pêlo curto tirava tanto pêlo. E ela não via Zoom no tapete. De onde esse gato tem tanto pêlo?
Marcos chegava a noitinha, trazendo sempre um pacote de pão com cheiro doce. Mas Zoom achava ele um boboca, reservando um olhar felino bem cruel para aqueles olhos esmaecidos. Zoom achava aquele cheiro doce enjoativo.
Depois da porta fechada, Zoom andou em círculos pelo tapete a madrugada toda.
Pela manhã, Luiza tinha um tapete cinza e um pequeno mostrinho de olhos feridos na sua sala, sem pêlos. Ela deu um grito e mandou seu namorado ir embora. E que nunca mais voltasse.












quinta-feira, 2 de junho de 2011

Clássico.






Risadas demoníacas quando o seu time perde é uma das minhas vinganças preferidas. Domingo tem jogo e eu vou estar sentada no sofá com um bando de demônios bem preparados. E foi você que abriu a porta do inferno, não se queixe.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Desengano.





Levei de seus olhos aquela negra previsão do futuro. Disfarçado em casa, em flores pelos cantos, em gatos passeando no teto. E eu desmaiava nos vincos que se acumulam em dias que, assim, transbordavam verdade. Não se engane, mesmo assim nada mudou. Relógio sem ponteiros. Asas sem função, paradas. As linhas da minha mão seguem um rumo exato. E não se engane. Nada mudou. E se há um segundo que se preze em um coração estagnado, será de percepção. Porque nada mudou. Aquelas asas, sem mais mistérios, pousaram bem ao seu lado. Brilhando.