Para Ana Paula Málaga e seu "Diário Externo"
Quando éramos crianças, quando a noite cai, eis a escuridão cremosa de nossos quartos. Seu visco pesando cobertores coloridos e afundando os travesseiros penosos.
O súbito esgar da cisma cai sobre lençóis lácteos e macios. A negritude firme e constante vagueia pelo tempo interminável.
E o monstro de cortinas drapeadas surge.
A sombra do seus dentes afiados morde o teto.
A luz que atravessa a janela é tênue e alarmante, pois não se sobressai nem sob súplicas infantis.
Nem que se reze baixinho.
O sono poderia nos salvar, mas ele demora, está tenso e atrasado.
E o monstro de cortinas esvoaçantes se mexe. A sombra dos seus dentes morde a parede.
O tempo escorrendo pelos vãos dos tacos.
A memória, esta sim, é ligeira como um coelho em campos abertos.
As pernas do monstro são estampadas de flores. E ele não fica tão feio assim.
Mas eu cubro a cabeça.
Porque eu ouço passos.
Eles pisam no tempo entre os tacos.
Os cobertores ficam mais pesados.
Seria o monstro de cortinas drapeadas e sombra de dentes afiados ?
Meus olhos escorrem para fora, bolinhas de gude batendo contra a parede.
E duas mãos doces estão enrolando o monstro de cortinas drapeadas.
A cara enrugada do monstro desaparece.
E as mãos trouxeram um copo bem cheio de sono
(Agora, adulta, esfrego os olhos)
e durmo com a lembrança clara
como a luz acesa de um quarto
lembro das mãos de minha mãe
vencendo
o monstro de cortinas drapeadas